segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O Semeador e o Ladrilhador

É famoso o capítulo do clássico ensaísta brasileiro "Raízes do Brasil" de Sérgio Buarque de Holanda que trata a respeito de como a disposição urbana de um determinado local reflete com grande precisão as motivações psicológicos e de mentalidade de um determinado povo ou cultura. Sempre me interessei por este assunto, afinal ao passo que identificamos incríveis semelhanças da América portuguesa que vivemos com a América espanhola, por outro lado identificamos diferenças que chamam a atenção por ir além da simples diferença lingüística, sobretudo no mundo globalizado em que vivemos.

Certa vez me perguntaram, como é possível Portugal e Espanha - países tão semelhantes culturalmente promoverem estilos de comprometimento e dominação sobre suas possessões ultramarinas - sobretudo nas Américas, tão distintos? Em verdade, por um período de tempo considerável do colégio, no senso comum acadêmico - estamos todos acostumados e acomodados com o modelo generalizante de separar a História da ocupação européia na América de duas formas, a "colonização de exploração" promovida pelas potências ibéricas e a famosa "colonização de povoamento" promovida pelos pilgrim fathers ingleses. Separamos dois estilos de colonização na América sem nos atentar até mesmo na possibilidade de encontrarmos nesta América Ibérica modelos muito diferentes e curiosos de dominação política e econômica.

O "Semeador e o Ladrilhador" é o capítulo que traz uma análise inédita do caráter histórico das colonizações ibéricas na América. Mergulhar nas disposições urbanas de cidades como São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Cidade do México, Caracas, Quito, Salvador, Santiago e etc é mergulhar no inconsciente daqueles portugueses e espanhóis nos séculos XV e XVI - não só daqueles que aqui chegavam mas daqueles que da metrópole orquestravam a "obra de conquista".

Recentemente, o lançamento de um serviço de "cobertura" fotográfico desenvolvido e disponibilizado pelo Google, o chamado "Google Street View" tem gerado um certo frenesi nos fãs de urbanismo e um incomum jogo de comparações. O Google Street View traz uma série de fotografias em 360º metro a metro de praticamente todas as vias das principais metrópoles do mundo. Na América Latina, o primeiro país a contemplar este serviço foi o México ainda em 2009. Usuários do serviço, sobretudo brasileiros - além de ressaltarem em fóruns especializados na internet as "falsas grandezas" outrora publicadas por usuários mexicanos, onde pelo contrário, vemos uma Cidade do México rica mas também extremamente desigual, ressaltam e demonstram também uma curiosa observação. Os bairros mexicanos - sobretudo do centro da cidade seguem um padrão de bloco muito específico e racional. Em 2010 o Brasil é que teve sua versão do Google Street View lançada, desta vez foram os mexicanos que avaliaram a cidade na internet e além de identificarem semelhanças com a Cidade do México no tocante à desigualdades sociais, notaram também a grande sinuosidade da cidade com bairros equidistantes de maneira não-linear, sem uma lógica geométrica - como é comum à cidades do México.

Ao analisarmos as cidades de toda a América espanhola, logo começamos a perceber uma sutil diferença. Todas as cidades genuinamente espanholas no Novo Mundo seguem um padrão geométrico estabelecido pela corte espanhola nas Leyes de las Indias (pormulgadas por Carlos I de Espanha em 1542). Tais ordenações visavam planificar e organizar todas aquelas vastas regiões de terra conquistadas pelo Império espanhol. Estas disposições ordenavam a criação de cidades estritamente planejadas - sem que houvesse por outro lado o menor pudor em sobrepor a lógica e racionalidade hispânica à cidades erigidas por civilizações avançadíssimas pelas quais os espanhóis entravam em contato. Vejamos alguns trechos das Leyes de las Indias:

Y ordenamos, que siempre se lleve hecha la planta del lugar, que se ha de fundar: (...) y quando hagan la planta del lugar repartanlo por sus plazas, calles y solares á cordel y regla, comenzando desde la plaza mayor, y facando desde ella las calles á las puertas y caminos principales, y dejando tanto compás abierto, que aunque la población vaya en gran crescimiento, se pueda siempre proseguir y dilatar en la misma forma (...) Las tierras que se huvieren de poblar, tengan buenas entradas y salidas por mar y tierra, de buenos caminos y navegación para que se pueda entrar y salir facilmente, comerciar, governar, socorrer y defender.

Percebam portanto a preocupação espanhola em fundar em território conquistado, bases sólidas da cultura organizacional de uma Espanha recém unificada. Esta disposição urbana ficou largamente conhecida como o esquema "Plaza Mayor" de onde toda a cidade deveria desenvolver-se - diferenciando assim das cidades portuguesas na América, onde o centro obrigatóriamente deveria ser uma Igreja e não uma praça. No Brasil, diferentemente do que ocorria no resto da América, não havia a menor preocupação com o planejamento urbano - nada que fosse além apenas de "local estratégico" e de escoamento de pessoas/produtos de forma mais eficaz. No Brasil Colônia, as primeiras procupações de fundações de cidades centravam-se estritamente nas questões de valorização religiosa como mostra as Constituiçoens Primeyras do Arcebispado da Bahia de Dom Sebastião Monteyro.

Além disso, as famosas Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1569) chocam pela total e completa ausência de uma linha sequer sobre planejamento edificacional em território americano. Temos de admitir que os esforços lusitanos no Brasil tinham de fato um caráter mais imediatista, fundamentalmente costeiro - voltado pro Atlântico, enquanto os espanhóis desbravaram os rincões interioranos da América. Desta forma, observamos na História de nosso continente colonial, o surgimento de dois tipos distintos de colonizadores, os portugueses como "semeadores" de ocupação enquanto vemos os espanhóis como verdadeiros "ladrilhadores" de cidades. Agora a pergunta, por que tal diferença? Os portugueses teriam de fato sido mais desleixados com o Brasil? A resposta é: não necessariamente.

Tanto em Portugal quanto na Espanha, desde as primeiras ocupações territoriais datadas do período romano, existiram cidades irregulares, não lineares e não geométricas. Cidades clássicas de Espanha como Cádiz são os exemplos mais latentes de caos urbanístico de que se tem notícia no mundo medieval. A idéia de que é preciso desenvolver uma cidade estritamente planejada e racional é uma construção da mentalidade moderna - renascentista em especial. Além disso, no momento em que a Espanha lograva seus êxitos territoriais na América, quase que simultaneamente está sendo difundida na mente espanhola a idéia de unidade nacional. A unificação da coroa de Castilla com a coroa de Aragón algumas décadas antes dos descobrimentos marítimos espanhóis, criou um senso de unidade e pertencimento nacional de caráter expansionista jamais antes visto naquele país, resultando por conseqüência num povo confiante voltado para um futuro de glórias. Se sobressaem os sentimentos de coordenação e de orientação mais racional - mais até do que a religiosa, ainda que tenha se sustentado um país altamente católico. Por este motivo aliás, para as cidades espanholas, a Igreja não necessariamente deveria estar no centro.

Assim vemos uma preocupação muito grande em projetar na América uma "Nova Espanha", onde a Espanha se reconstrói perfeitamente racional no mundo americano - não havendo nem mesmo espanto e admiração pelas civilizações avançadas que eram encontradas. Portugal no tempo de descobrimento do Brasil, há estas alturas já havia experimentado esta euforia racional bem antes dos espanhóis. A consolidação do Estado nacional de Portugal havia ocorrido ainda no século XIV e às alturas de 1500, Portugal havia conquistado um Império mundial experiente, calejado, ciente das dificuldades de manutenção de todo aquele mundo ultramarino. Não é a toa que Portugal só viria a dar a devida importância às terras que havia "descoberto" na América já na segunda metade do século XVI quando a concorrência com os holandeses na intrincada disputa do mundo conhecido já havia se acirrado consideravelmente - sobretudo na Ásia. Não é que Portugal não se interessasse por desenvolver um território firme, sólido desde o seu início - ao invés, praticou uma política de semeadura. Semeia aqui e acolá, o Lessaiz-Faire colonial parece muito mais prático. Portugal desenvolveu na realidade um modelo único de administração colonial pautado na praticidade e na crença de desenvolvimento autônomo.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

África na Escola: Uma teia complexa





É muito comum encontrarmos nos estudos de História poucas, escassas ou nulas informações acerca da África. A aprovação da lei 10639/03 gerou e ainda gera muita polêmica nos meios escolares, afinal, tornou-se de um dia para o outro obrigatório o ensino de História da África e a maioria esmagadora dos educadores e educandos não estavam e aliás, ainda não estão preparados para lidar com o assunto - ainda que em uma sala de aula de todas as escolas públicas, pelo menos um aluno, numa média de 40 alunos por sala é negro ou mestiço. Como é possível, afinal de contas, dissociar a História da Humanidade sem olharmos para o continente de onde toda a civilização humana descende? A partir desta prerrogativa, passamos a compreender o porquê a História ensinada nas escolas possui uma aparência um tanto quanto distante para muitos alunos - afinal, sempre analisamos a História do Mundo de uma perspectiva eurocentrada e só agora fomos nos dar conta disso. Passado o estranhamento inicial e a superação de obstáculos básicos sobre a África - dados que vão além do tradicional Egito Antigo, é onde encontramos grandes problemas dos estudos africanos no Brasil e no Mundo, onde adentramos num campo absolutamente vasto de informações.

Afinal, quê África das "Áfricas" pintadas na Historiografia moderna (desde quando a História se torna uma disciplina no século XIX) vamos ensinar nossos alunos?

Discursos e imagens elaborados com a narrativa Eurocentrada

O discurso elaborado sobre a África é influenciado em grande parte pela projeção européia, no século XIX, da idéia de “África-Objeto” (que aliás também é responsável pela morfologia fronteiriça da África ao longo do dois últimos séculos) no processo de dominação política e econômica do continente pelas potências capitalistas européias, o chamado Neo-colonialismo. Esta dominação culminaria numa visão absolutamente distorcida a respeito da historicidade de povos com tradições e memórias milenares – sobretudo da África subsaariana – freqüentemente relegada a um segundo plano quando comparada a História norte-africana. Nesta linha identificamos o africanista Maurice Delafosse cuja primazia dos estudos subsaarianos na primeira década do século XX é ofuscada em grande parte por esta visão limitada e eurocentrada. Destaca-se também Yves Urvoy, historiador francês, autor de obras importantes como Histoire dês populations Du Soudan central (História das populações do Sudão central) de 1936 e Histoire de l’empire de Bornou (História do império de Bornu) de 1949.

Contribuições e limites do Afrocentrismo

Na espessa “poeira” que emerge no continente africano no período das independências coloniais, observa-se a emergência do afrocentrismo como instrumento de sobreposição ao modelo político estabelecido pelos colonos europeus. A Historiografia africana viria a mudar exponencialmente com o desenvolvimento de uma visão inclinada aos nacionalismos. Além disso, houve as independências mas a estrutura econômica dos países africanos permaneceu sendo colonial. O historiador senegalês Cheikh Anta Diop se destaca neste período numa abordagem acadêmica revolucionária que promovia o renascimento africano e o federalismo do continente. No entanto, sua abordagem é excessivamente Egito-centrista, deslocando toda a pluralidade africana na base das civilizações denominadas “Nilóticas” e pela importância acordada à noção de raça. Historiadores como o congolês Elikia M’bokolo ganham proeminência ao ressaltar a importância de se resgatar ricas memórias de civilizações da África subsaariana antes relegada ao Egito-centrismo. Sua obra-prima, L’Afrique noire. Histoire et civilisation (A África Negra: História e Civilizações) é de suma importância para os estudos historiográficos das civilizações africanas. E mesmo os acontecimentos políticos da República Democrática do Congo (ex-Zaire) e país de origem de M’bokolo, demonstram e exemplificam de certa forma o sentimento de resgate dos valores africanos contra aqueles estabelecidos pelos colonos. Nos anos de 1970, o então líder congolês Mobutu promove uma verdadeira “africanização” proibindo nomes ocidentais e cristãos. O próprio Mobutu havia, desde a deposição do líder Patrice Lumumba, modificado seu nome de Mobutu Joseph Désiré para Mobutu Sese Seko Koko Ngbendu waza Banga. Portanto, vemos a busca pela quebra de idéias que tornavam a Civilização Egípcia como a grande “fundadora” civilizacional do continente ressaltando que muitos reinos africanos ultrapassavam os limites de simples povoados ou tribos como a Historiografia tradicional havia tornado comum. Vemos a necessidade de se ter novas abordagens e observamos que o continente africano possuiu múltiplos eixos de desenvolvimento político, econômico, artístico, social e etc ao longo de milênios, além disso, não podemos ignorar todo o desenvolvimento de um “mundo atlântico” de onde se observa toda uma expansão multicultural africana para o Novo Mundo desde o século XVI com o processo de colonização das chamadas “Índias ocidentais”, o tráfico de escravos e etc. Tal panorama é demonstrado a partir da obra “O Atlântico Negro” de Paul Gilroy.

Estudos pós-coloniais e o pós-modernismo

A “cacofonia de discursos” gerada a partir dos panoramas historiográficos já mencionados na realidade moldou novos debates acerca da História da África. Vemos críticas aos modelos emergentes – sobretudo após a segunda guerra mundial onde evita-se difundir a noção de raça mas as supremacias político-econômicas das instituições hegemônicas permanecem intocáveis. O multiculturalismo como fonte de mudança nas estruturas de poder deve ser amplamente debatido. É preciso compreender que no processo histórico, o colonizador é influenciado pelo colonizado e vice-versa. A grande importância pela busca de “Micro-Histórias” locais tece uma Historiografia mais completa para a análise do todo, fugindo assim das categorias generalizantes A visão Pós-Moderna por sua vez inaugura a coexistência de uma teia de conexões históricas e a idéia de caos. Desde modo, até que ponto podemos definir a História não só da África mas das culturas globais como uma sucessão de múltiplos eixos contra a idéia de caos? A África e a Europa sempre se entrecruzaram em caos não lineares – fato que sempre existiu – não sendo exclusividade do panorama Pós-Moderno. O discurso Pós-Moderno traz a idéia de cortina de fumaça para um quadro multifacetado e de múltiplos eixos perfeitamente observáveis por meio do exercício histórico bem elaborado.